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Insistente leitor, acabou a tinta da minha caneta bic. Portanto, agora
me mancho de vermelho. Aproveito a nova cor pra me apresentar: meu nome é Alma Pontes
Borges, tenho alguns anos (o suficiente), sou casada e desinteressada. Não, não
tenho filhos, mas uma porção de sonhos sem modos. Tenho também uma maneira
bagunçada de me entender com a vida. Não
desapareça você, um dia ainda gostará de mim e dos meus sonhos bagunçados.
Como ia dizendo minha
caneta canhota.
Ela possuía um timbre de voz inconfundível. Atingia naturalmente o
Dó6, uma façanha mesmo entre os sopranos. Sua presença se impunha, acima de
tudo, aos tímpanos daqueles que não queriam ouvi-la. A moda era dançar lambada,
sapatear sobre uma época em que milhares de pessoas iam à falência com o Plano
Collor, e Lara gostava de exibir seus dotes, movimentando braços e pernas como
uma minhoca e gritando agudo algum refrão do Beto Barbosa. A garota era conhecida como a filha do
Putaqueopariu. Seu pai sofrera um derrame após perder todas as suas economias pra
dupla De Mello — Fernando Collor / Zélia Cardoso. Depois do AVC, conseguia
apenas falar aquele palavrão, putaqueopariu, tradutor de sentimentos complexos,
a abranger desde a alegria até a tristeza, passando pela indignação, raiva, ou
por um simples cumprimento informal. Segundo a filha, o pai nunca falara tanto.
Alma conhecera Lara de uma maneira incomum. Andavam lado a lado em uma rua
estreita, alheias uma à outra. Um rapaz muito magro e apressado se chocara
contra as duas. Pressionava sobre o peito um malote abarrotado daquelas notas
marrons estampadas com a foto de Mário de Andrade. Sem que esperassem, o rapaz
jogara muitas dessas notas de quinhentos mil cruzeiros pro alto e sumira veloz,
enquanto se formava à sombra daquelas mil figuras de Mário de Andrade uma
multidão de famintos, a interditarem a passagem da polícia que se aproximava.
Lara e Alma se entreolharam:
— Você viu isso? Putamerda. — a voz de Lara se confundia à sirene
policial.
— Que loucura!
— Meu nome é Lara e o seu, criança?
— Alma.
— Vamos sair daqui. Isso aqui tá uma zona.
— Vem cá, então.
Alma levara a nova amiga ao McDonald’s. Começaram a conversar sobre
assuntos além. Lara tinha quatorze anos. Dois anos mais velha do que Alma. Dois
anos mais nova do que Mauro. Uma equidistância imperfeita.
Putaqueopariu+++---
Caro leitor, aqui, na primeira camada do segundo capítulo, interrompo as lembranças de Alma, o resto, permanece circunscrito no caderninho mágico sufocado contra seu peito