Trecho extraído por uma leitora muito especial

Trecho extraído por uma leitora muito especial

Mais caneta, por favor

2 -

 
Insistente leitor, acabou  a tinta da minha caneta bic. Portanto, agora me mancho de vermelho. Aproveito a nova cor pra me apresentar: meu nome é Alma Pontes Borges, tenho alguns anos (o suficiente), sou casada e desinteressada. Não, não tenho filhos, mas uma porção de sonhos sem modos. Tenho também uma maneira bagunçada de me entender com a vida.  Não desapareça você, um dia ainda gostará de mim e dos meus sonhos bagunçados.

Como ia dizendo minha caneta canhota.    

Ela possuía um timbre de voz inconfundível. Atingia naturalmente o Dó6, uma façanha mesmo entre os sopranos. Sua presença se impunha, acima de tudo, aos tímpanos daqueles que não queriam ouvi-la. A moda era dançar lambada, sapatear sobre uma época em que milhares de pessoas iam à falência com o Plano Collor, e Lara gostava de exibir seus dotes, movimentando braços e pernas como uma minhoca e gritando agudo algum refrão do Beto Barbosa.  A garota era conhecida como a filha do Putaqueopariu. Seu pai sofrera um derrame após perder todas as suas economias pra dupla De Mello — Fernando Collor / Zélia Cardoso. Depois do AVC, conseguia apenas falar aquele palavrão, putaqueopariu, tradutor de sentimentos complexos, a abranger desde a alegria até a tristeza, passando pela indignação, raiva, ou por um simples cumprimento informal. Segundo a filha, o pai nunca falara tanto. Alma conhecera Lara de uma maneira incomum. Andavam lado a lado em uma rua estreita, alheias uma à outra. Um rapaz muito magro e apressado se chocara contra as duas. Pressionava sobre o peito um malote abarrotado daquelas notas marrons estampadas com a foto de Mário de Andrade. Sem que esperassem, o rapaz jogara muitas dessas notas de quinhentos mil cruzeiros pro alto e sumira veloz, enquanto se formava à sombra daquelas mil figuras de Mário de Andrade uma multidão de famintos, a interditarem a passagem da polícia que se aproximava. Lara e Alma se entreolharam:
— Você viu isso? Putamerda. — a voz de Lara se confundia à sirene policial.
— Que loucura!
— Meu nome é Lara e o seu, criança?
— Alma.
— Vamos sair daqui. Isso aqui tá uma zona.
— Vem cá, então. 
Alma levara a nova amiga ao McDonald’s. Começaram a conversar sobre assuntos além. Lara tinha quatorze anos. Dois anos mais velha do que Alma. Dois anos mais nova do que Mauro. Uma equidistância imperfeita.  

 Putaqueopariu+++--- 

Caro leitor, aqui, na primeira camada do segundo capítulo, interrompo as lembranças de Alma, o resto, permanece  circunscrito  no caderninho  mágico sufocado contra seu peito