Trecho extraído por uma leitora muito especial

Trecho extraído por uma leitora muito especial



Aviso ao (à) leitor (a)

As passagens improváveis desta autobiografia(?), como a amizade entre um cachorro e um urubu e as únicas palavras pronunciadas por um homem após o AVC, putaqueopariu, são baseadas em fatos reais. O resto fica a teu critério, caro (a) leitor (a), que usufruis de prerrogativas inerentes a um(a) leitor(a), constituído de imaginação e de perguntas. Digo perguntas, pois que a ti reservo, sobretudo, o direito da dúvida.













Permiti, porém, que “eu, pó e cinza”, fale à vossa misericórdia. Sim deixai-me falar, já que à vossa misericórdia me dirijo, e não ao homem que de mim pode escarnecer

Santo Agostinho






Índice

Capítulo 1 – Chamada a cobrar

Capítulo 2 – Número errado

Capítulo 3 – Discagem Direta

Capítulo 4 – Após o sinal

Capítulo 5 – Fora de área

Capítulo 6 – Telesp informa

Capítulo 7 – Este número de telefone não existe

Capítulo 8 – Linha cruzada

Capítulo 9 – Não tem ninguém com esse nome

Capítulo 10 – O número que você está tentando ligar

Capítulo 11 – Piii, piii, piii, piii

Capítulo 12 – Alô? É ela.









1-






“Essa música é você, tatá”, ele diz enquanto aumenta o volume do rádio e eu, de riso amarelo, custo a lembrar que um dia já gostei de Joni Mitchell e do seu big yellow taxi. Pouco ouço a voz desafinada de Carlos sobre o som alto. Procuro-me no espelho retrovisor do carro. Ou quem sabe alguém ali em quem eu me reconheça pelo sorriso filhodaputa e pelos olhos vesgos.

Hey, farmer, farmer, put away that D.D.T., now!
Give me spots on my apples
But leave me the birds and the bees, please!

 
“você ainda gosta disso?”, pergunto distraída ante uma imagem que já quase não é minha. Ele não responde. Continuo a me buscar no reflexo do rosto. Em que me transformei?

Late last night I heard the screen door slam.
And a big yellow taxi took away my old man
.

Carlos desliza as mãos grandes sobre o volante. Desligo o rádio. Não sou sempre assim. Particularmente hoje guardo em mim uma porção horrorizada e desconfortável de mim mesma. Se soubesse que algum dia tivesse que passar por isso, talvez terminasse tudo antes. Mas agora, do que de resto ainda sou, consigo apenas me prender a esta imagem que me foge e a este riso filhadaputa. Não quero pensar, desabafar silenciosa isso de inexato que me acaba. Depois do que me ocorreu de madrugada, descobri que meu único desejo é narrar de alguma forma do que sou feita, rabiscar meu passado com a mão esquerda no intento de compreender a razão do meu choro seco.

Uma caneta bic, por favor, e pode ficar com o troco, caro leitor;

Cinco horas da manhã. Os dedos tropeçavam naquele início de dia. Digitou sonolenta (abre aspas) morte (espaço) perda (espaço) assass, deletou as palavras sem pausa pra rapidamente escrever síndromedesobrevivência. Deveria haver um termo exato praquilo que sentia. Posicionou o cursor em PESQUISAR e apertou o botão. Coçava o canto esquerdo do olho com força enquanto lia na próxima página: VOCÊ QUIS DIZER: SÍNDROME DE SOBREVIVÊNCIA. Na realidade, Alma não queria dizer muita coisa, só procurava pelo nome próprio acomodar-se melhor em seu sentimento obtuso. Um site de busca era o mais adequado. Por outro lado, ficou surpresa pelo fato de realmente existir aquele termo. Correu os olhos pela lista de sites que continham aquelas palavras esquisitas, até que um específico lhe reteve a atenção. Não porque exibisse diagnósticos e siglas psiquiátricas ou mesmo fórmulas de auto-ajuda capazes, quem sabe, de aliviar a dor, mas porque estranhamente apresentava uma poesia. Era possível uma poesia com aquele palavrão? Atraída por aquela improvável combinação, entrou no site. Lá estava o poema, com a tal da “síndrome de sobrevivência” nas últimas estrofes. Conteve um riso. Desceu a barra de rolagem curiosa com o nome do autor daquela façanha. Encontrou, porém, mais do que um nome ali. Deparou-se com sua infância perdida naquele nome. A poetisa era, pro seu grande espanto, Priscila Figueiredo, sua amiga dos tempos de criança. 

Continua